Acompanhe a Noize - clicando no link ai ao lado
O ano era 1999, e Lobão vivia o que muitos poderiam considerar o pior momento da sua carreira. De membro fundador da Blitz no início da década de 80 e hitmaker nacional, emplacando “Me Chama”, “Essa Noite, Não” e tantas outras, Lobão vivia uma era de vendas minguando e poucos sucessos. Depois de sair da RCA Victor, gravadora em que lançou seus CDs mais populares, ele se aventurou na Virgin e na Universal para soltar, respectivamente, os discos Nostalgia da Modernidade (1995) e Noite (1998), ambos que, apesar da recepção positiva da crítica, passaram longe de ter boas vendas. No fim das contas, o músico se viu sem qualquer apoio das grandes gravadoras e partiu para o registro de seu 9º disco solo de estúdio, agora totalmente independente – no seu próprio selo, o Universo Paralelo – e de uma forma que, mesmo não sendo completamente inédita, era bastante inovadora para um artista como ele. Em setembro daquele ano, Lobão lançava o A Vida é Doce nas bancas, acompanhado de uma revista relacionada ao álbum e com uma sonoridade moderna e surpreendente, misturando o trip hop com sons acústicos e o estilo clássico do cantor. A ~mídia especializada~, encabeçada pela revista Bizz, acompanhou todo o processo do álbum e não dispensou elogios depois do lançamento. Algum tempo depois, estimou-se que as vendas da revista/CD tenham chegado a 100 mil cópias, número inimaginável para a música independente nacional de então (e de hoje). E Lobão aproveitou a boa recepção e a divulgação intensa na mídia (mesmo que as músicas não tenham chegado com força às rádios) para se posicionar a favor da arte independente e tentar mostrar uma outra realidade possível, em um momento que marcou a música brasileira. Alguns anos depois, Lobão ainda apresentaria a revista OutraCoisa, com formato semelhante, em que foram lançados discos como Enxugando Gelo, de Bnegão & Os Seletores de Frequência, e Nadadenovo, do Mombojó.
Mesmo que haja quem questione a “qualidade artística” da produção do músico e duvide de sua relevância para a formação dos cânones da cultura musical brasileira, é inegável a importância de Lobão no mínimo como um dos grandes agitadores do que veio a ser o rock independente nacional do século XXI. E isso é maior do que o fato de que, nos 17 anos seguintes ao lançamento de A Vida é Doce, Lobão muito mais falou que compôs. Falou de música, de economia criativa, de si mesmo, de todas as coisas que você pode imaginar. E, claro, falou e segue falando muito sobre política e sobre o espírito do tempo brasileiro, se declarando abertamente de direita desde meados de 2010 e militando com força na linha liberal. Desde 1999, foram só dois discos de inéditas, Canções dentro da noite escura (2005) e o recém-lançado O Rigor e a Misericórdia (2016), tema da conversa que tivemos com o cantor por e-mail. E Lobão não mede palavras para falar sobre o novo álbum: “Há uma linguagem nova, fresca e desafiadora em O Rigor e a Misericórdia que, mesmo se eu juntasse todos os meus trabalhos juntos, não atingiriam nem um décimo de sua potência.”, comenta, ao evocarmos o teor revolucionário da sonoridade de A Vida é Doce em comparação com O Rigor, um trabalho que dialoga com o rock setentista seja nos seus timbres, na conversa com o folk, o progressivo e a música acústica ou na sua mixagem cristalina. Junto com o disco, o artista segue a tradição de falar bastante com Em Busca do Rigor e da Misericórdia – Reflexões De Um Ermitão Urbano, livro em que documenta a composição e as primeiras gravações de O Rigor, expressa seus pensamentos sobre episódios recentes da mídia, arte e política e conta fatos da sua vida que ocorreram nos últimos seis anos, em algo como uma pequena continuação de sua biografia, 50 Anos a Mil.
Aliás, foi exatamente com seu primeiro livro em mente que Lobão começou a escrever o Em Busca, no meio das gravações do disco. “Era para ser um apêndice da futura edição do 50 Anos a Mil. Só percebi que se tratava de um evento com natureza própria quando já estava em seu final“, conta, comentando ter escrito tudo em três semanas, com muita pressa, pois o que queria mesmo era música: “eu escrevia um parágrafo, parava e suspirava com meus olhos compridos de melancolia a observar meus instrumentos abandonados ao meu lado”. O livro conta praticamente tudo que envolveu a composição das faixas, sempre com uma visão pessoal de Lobão. O texto é emocionado e carregado com detalhes do processo, às vezes focando nas letras, às vezes no registro dos sons e escolha de instrumentos, às vezes nos acordes e nas harmonias escolhidas e escritas. Claro, Lobão também fala de política, mesclando discursos mais abrangentes, de fácil entendimento para qualquer leitor, e alguma partes visivelmente feitas para “iniciados”, com várias referências aos seus dois best-sellers, 50 Anos a Mil e Manifesto do Nada na Terra do Nunca. Lobão também faz uma mini biografia dos seus últimos seis anos, destacando e comentando o episódio do lançamento d’O Manifesto, sua ida a Brasília em dezembro de 2014, logo depois das votações da Lei de Diretrizes Orçamentárias e também algumas de suas rusgas públicas, como a com o jornalista gaúcho Juremir Machado da Silva.
Em Busca se divide entre biografia, manifesto e livro de acompanhamento para o novo disco, e as histórias de muitas faixas surpreendem. “Ação Fantasmagórica à Distância”, por exemplo, foi a primeira a ser registrada e nasceu num momento mágico para o músico, em que ele sentiu uma conexão emocional extrema com as memórias de seu pai, como conta no livro: “Estava possuído de um desejo intenso de abraçar meu pai e de uma tremenda vontade de cantar a música inteira sem fraquejar. Após dezenas de tentativas, trêmulo de exaustão, respirei fundo e finalmente consegui. Uma alegria descomunal tomou conta de mim. Eu beijava a viola caipira, beijava o teclado, beijava meus braços, minhas mãos, meus cotovelos”. Outro destaque é “Alguma Coisa Qualquer”, composta originalmente na década de 90 para a interpretação de Cássia Eller e que tem uma história emocionante contada pelo músico.
Se o coração de O Rigor e a Misericórdia está exposto no livro, Lobão nos revelou por e-mail vários detalhes do disco que aconteceram posteriormente ao fim de Em Busca e algumas de suas opiniões mais fortes sobre o próprio trabalho. Apesar de já produzir o que veio a ser o novo álbum desde 2013, e de ter feito tudo sozinho e em casa, desde as letras até as composições, os instrumentais e as gravações, o artista lançou um crowdfunding no site Kickante em maio de 2015 para finalizar de vez o disco. Foi com essa ajuda que o músico conseguiu um equipamento de qualidade para regravar o álbum praticamente por inteiro. “99% do álbum foi todo refeito depois do livro ser escrito. Desde que chegou a placa de áudio nova que comprei com a ajuda dos apoiadores do crowdfunding, a diferença de som foi brutal. Tive que respirar fundo e refazer tudo e isso me custou mais um mês e meio pra regravar o que realmente precisava: guitarras, baixo, baterias, teclados e todas as vozes.” Sobre a mixagem e masterização do álbum, Lobão revela que também foram feitas na sua casa, mas com a ajuda de Diovainne Moreira, responsável por instalar a placa de som e, desde então, amigo do músico. “Aprendi muito com ele nesse processo e continuo aprendendo. Uma figura rara e providencial.”
Nesse mergulho solitário dentro do seu próprio mundo sonoro, Lobão traz em O Rigor e a Misericórdia um disco diverso e com ideias surpreendentes até para quem é fã antigo do cantor. O Rigor é um trabalho de rock, com uma queda para os anos 70, mas que o próprio artista classifica como tendo um “timbre absolutamente próprio”. Além da bateria e guitarra, instrumentos que fizeram parte da formação de Lobão, o cantor se aventurou no baixo, na viola caipira e nos teclados, esses últimos com presença marcante através de diversos timbres. Não é por acaso que, muitas vezes, há a impressão de estarmos ouvindo um arranjo de cordas, num clima semelhante ao rock progressivo. Quando comentamos sobre isso, Lobão confirma: “O fato do disco novo soar virtuoso é porque você ouve realmente os instrumentos que, desta feita, executam com perfeição as minhas intenções de autor”. É nesse ponto que evocamos a comparação com A Vida é Doce, o histórico álbum que é descrito no início do texto. Lobão diz ter um profundo amor pelo repertório do disco de 1999, mas que o resultado que saiu em CD não o agrada por suas mixagem e masterização “péssimas”, detalhes que pode corrigir com o tempo, nas apresentações ao vivo; e também comenta não ter orgulho da tentativa de soar moderno na sonoridade, “pois ela é postiça, afetada”. “Creio que o conceito de misturar violas caipiras, violões seresta, com baterias, teclados e guitarras uma fusão muito mais criativa e possante do que as tentativas kitsch da sonoridade trip-hop de A Vida É Doce”, completa.
Ainda falando sobre A Vida é Doce, Lobão revela que ter discutido muito com o produtor do disco e que, “como sempre, me frustrei muito ao ouvir o resultado final”. O músico revela que a frustração com o próprio trabalho foi uma constante em sua carreira, e que O Rigor e a Misericórdia também foi diferente nesse ponto. “O Rigor e a Misericórdia é o primeiro trabalho que realizo e não sofro de ressaca moral ao ouvi-lo completo. É uma sensação maravilhosa você se ouvir e finamente exclamar: ‘isso sou eu até o osso, isso é tudo o que queria dizer da forma exata como queria me exprimir’. Por ser isso, algo inédito na minha vida, guardo esse momento como a maior conquista que já empreendi.” Como já deu para perceber, Lobão não mede palavras para expressar seu carinho por O Rigor. Quando perguntado sobre o fator “caótico” das composições, sobre quantas músicas, a partir do livro, parecem ter surgido em momentos de inspiração espontânea, o artista nega esse fator como definidor do que é O Rigor. “O disco foi todo feito com esforço, foco e intenção em concebê-lo. Passei 10 anos me qualificando para compô-lo, gravá-lo, tocá-lo e arranjá-lo. Isso sim foi o que me tomou tempo”, explana, não deixando de falar que, claro, às vezes pequenas inspirações surgem no meio do trabalho duro. Porém, ele define com força: “fiz o disco com o mesmo empenho e disciplina de um aluno que é obrigado a fazer uma redação no colégio: sentar-se diante do papel em branco, violão, guitarra ou viola caipira no colo, ou debruçado no piano a queimar a mufa dia e noite.”
E o resultado de todos esses fatos é um Lobão renovado, um artista que, nas suas próprias palavras, se sente começando de novo. Quando perguntamos se, depois de O Rigor, ele sente vontade de continuar fazendo música, a reposta é positiva e chega até em tom de celebração. “Pela primeira vez em toda a minha carreira eu termino um disco com a sensação de que a brincadeira acabou de começar. Na verdade, na minha cabeça, minha história musical se inicia com esse disco. O resto foi ensaio.” Falando sobre “A Solidão em Sermos Nós”, faixa divulgada como poema em português há algum tempo, mas que ganha versão em espanhol no disco com “O Que Es la Soledad en Sermos Nosotros”, Lobão revela que está planejando um lançamento em vinil duplo com extras para O Rigor, e que a gravação em português para a canção provavelmente estará na edição. Como Lobão transparece em toda a entrevista, as palavras e o tratamento para O Rigor e a Misericórdia são de luxo, de um artista realmente orgulhoso de seu trabalho.
Em certo ponto do livro, Lobão também explica a origem do título O Rigor e a Misericórdia, e ele é um conceito de um dos grandes gurus e amigos de Lobão desde a sua “guinada à direita”: Olavo de Carvalho. Em uma explicação muito simplificada, o “rigor” e a “misericórdia” seriam a relação do homem com o conhecimento e a poesia. O ser humano traria o seu rigor para com o espírito através do estudo e da pesquisa, para se aproximar cada vez mais de uma sabedoria. O espírito, então, devolveria a poesia como misericórdia, em resposta ao rigor. O conceito traz um viés muito forte de um pensamento de plenitude artística, de uma arte ideal. E assim perguntamos para o artista, se ele titulava O Rigor assim por considerá-lo seu melhor trabalho, sua obra-prima. Mas a resposta é negativa. “É mais simples: eu precisava de um título que representasse a forte dualidade que habita seu repertório, como delicadeza/fúria, acústico/elétrico, escuridão/luz, morte/eternidade. Quando descobri o texto do Olavo, achei perfeito o título para um conceito que se desenvolveria com vida própria e identidade própria no universo do disco.” Após isso, Lobão ainda revela: “confesso que senti estar fazendo algo muito especial apenas no final do disco. No início, não tinha a menor noção do que estava fazendo. Mal sabia ligar o Pro Tools. Foi como pegar uma caravela sem manual de instruções e me lançar ao mar desconhecido.”
A partir desse ponto, nossas perguntas rumaram para a política e sua relação com a música, algo inevitável quando se está falando com Lobão. O Rigor traz “A Marcha Dos Infames”, “Os Últimos Farrapos da Liberdade” e “A Posse dos Impostores”, faixas com um forte teor político e até de militância, características que Lobão declara detestar na música como um todo. “Detesto música de protesto. É de uma cafonice aterrorizante. Se fiz, foi por pura necessidade. E por isso a parcimônia em compor esse tipo de canção. Eu faço música para minha felicidade e liberdade interiores. A solidão é minha companheira e minhas expectativas externas são zero”, comenta, antes de conversarmos sobre a caçada “inclemente e contínua” à sua pessoa que Lobão vê na mídia e na sociedade. Perguntamos se ele acha que é mais perseguido hoje do que em outros tempos, e o cantor nega: “não consigo imaginar que em algum momento da minha carreira minha exposição tenha sido mais amena.” Para Lobão, o Brasil não permitiria uma personalidade como ele ter “algum tipo de sossego ou sequer algum respeito”, e sua resposta para os ataques da mídia e da sociedade viria em suas obras, com o novo álbum como exemplo. “O meu objetivo em registrar O Rigor na história foi poder devolver a miséria que nos é imposta por viver num país tão colapsado em sua civilização, com uma produção cultural tão feia e mesquinha, com um disco de uma beleza inexplicável, cruel, quase indecente.” Ainda falando sobre a cena cultural brasileira, comentamos sobre propostas como Transfusão Noise Records, Geração Perdida de Minas Gerais e Quintavant, selos e movimentos que representam certa independência ao mercado e também ao governo, que Lobão tanto abomina. O artista revela não conhecer essas propostas, mas as parabeniza desde já, pois se identifica com suas ideias. “Existo dentro desses mesmos cânones. Não temos mais espaço para pensar em mainstream, gravadoras, rádios, etc”
Assim como no conteúdo de certas músicas, os ataques de Lobão à esquerda no livro são pesados, tentando atingir com força também os artistas e intelectuais que expressam pensamentos ligados ao socialismo. Em Busca não deixa de ser um show de aforismos, alguns que os mais sensíveis podem considerar até ofensivos. “Não é de graça que a atual produção musical do país é a mais inexpressiva e desimportante de toda a história da música popular brasileira”, declara, entre as páginas 121 e 122. E quase todo comentário político é acompanhado de comparações e sacadinhas com estereótipos da esquerda atual, principalmente a universitária. E, nas perguntas relacionadas a política, Lobão não foge muito desse viés apocalíptico. “Estamos vivendo o apogeu de um perverso totalitarismo cultural. Tenho a sensação que nunca produzimos tanta porcaria. Minha sensação é de que estamos em pleno colapso civilizacional. Minha sensação é que tudo me indica um Brasil podendo se evaporar do mapa, se estilhaçar por inteiro a qualquer instante. Sem exageros, pode crer”, comenta sobre a mesma frase citada acima. Lobão amplia a explicação sobre esse “totalitarismo cultural” comentando que vivemos “numa civilização patrimonialista, em um coronelato que se estende a toda produção intelectual e que sempre teve uma presença dominante do pensamento esteticista inclinado à esquerda.” E o argumento do músico é de que isso simplesmente não faz bem ao país, pois o coronelato de “sábios”, intelectuais, formaria uma rede de cooptação ideológica sedimentada com o modernismo e que controla o pensamento nacional (de forma totalitária) desde o Estado Novo. “Em outras palavras: foi o momento em que a classe artística e os intelectuais começaram a mamar grana do poder e ditar normas de comportamento”, comenta. Apesar de contar no livro que sua aproximação aos pensamentos de direita veio, em parte, da reação negativa que os militantes de esquerda tiveram com um discurso em que criticara a Comissão da Verdade e defendera anistia para todos os envolvidos em crimes durante a ditadura, até mesmo torturadores e demais integrantes do regime, Lobão chama a expressão “guinada à direita” de “souvenir e brinde desse totalitarismo cultural de que estou falando. Quem não se alinha aos sábios e coronéis é reacionário, direitista e a favor da ditadura militar”. Nesse ponto, é bom lembrar que o artista jamais se disse a favor da ditadura, mas sim como liberal e defensor do Estado mínimo.
Lobão também comenta isso durante a entrevista, expressando algo como uma fórmula de Estado mínimo que consideraria próxima ao seu ideal de formato político. “Privatização inclemente, livre iniciativa, redução dramática de impostos, fim do assistencialismo, incremento do empreendedorismo, produção de riqueza ao invés de distribuição de riqueza. Liberdade de expressão, de opinião, fim da doutrinação nas escolas.” Seguindo a conversa sobre política, Lobão demonstra cada vez mais demarcadamente seu desprezo à esquerda. Perguntado sobre os partidos menores com ligação às ideias socialistas, mas que não são ligados ao governo, o cantor ironiza: “são ainda piores! A esquerda é o corrimão do ressentido.” Perguntado sobre os países nórdicos, usados por muitos como exemplos do sucesso da social-democracia, o artista afirma: “estão todos empobrecidos, sendo obrigados a se recapitalizar. Sem contar com a plêiade de vagabundos, encostados e indolentes auto vitimizados gerados em seu seio”. E essa negação extrema de qualquer ideia próxima à esquerda acontece em praticamente todo o Em Busca. Na página 42, escreve: “não há na história da humanidade um só caso de que possamos nos jactar, de alguma pálida forma que seja, da esquerda tendo um papel bem-sucedido como modelo político”. O artista se expressa como se as ideias de esquerda fossem falidas já em sua base, quando a ideologia ainda carrega muitos seguidores no mundo inteiro. Parte de uma negação de qualquer forma de diálogo com ideias políticas socialistas, de um total desprezo a tudo que tende a direções contrárias ao seu pensamento. Lobão responde bem às nossas perguntas mais complexas, mas ainda se entrega a um teor conspiratório e que parece não ter força de diálogo com parcelas mais de centro da sociedade quando tenta se aprofundar na negação do socialismo. É uma visão bastante fechada, quase inversa a um pluralismo de ideias que seria natural a qualquer democracia. Ao contrário das próprias noções de “rigor” e “misericórdia”, suas expressões se aproximam muito mais ao marketing do que às trocas de conhecimento, principalmente quando às expressa em público. E esse é um sintoma perceptível não só na direita. A esquerda extrema tende a ver todos os males na parte liberal do mundo, enquanto a direita extrema considera tudo um capitalismo de Estado e diz que não há um liberalismo real – visões hipócritas, já que a esquerda passa a negar uma de suas bases teóricas, a dialética; e a direita se aproxima de uma caça às bruxas digna de Estados autoritários. E o mais interessante é que essas expressões de Lobão podem ser vistas, também, como o transparecimento de uma cultura muito atual, em que toda a comunicação, mesmo a pessoal, se torna marketing – e isso se expressa com força nas redes sociais, em que o simples diálogo é quantificado e qualificado constantemente. Mas vale salientar que essa é uma impressão causada pelo livro, o disco e a entrevista, já que Lobão vem tentando nas últimas semanas abrir um diálogo com Chico Buarque, Gilberto Gil e Caetano Veloso, por exemplo.
Para além desse tour de force de pensamentos sobre Lobão expressos no último parágrafo, que pedimos para que os mais apaixonados por ideais políticos ignorem, é inevitável afirmar que O Rigor e a Misericórdia e o livro que o acompanha mantém o artista com uma relevância impressionante. Seja através de suas ideias políticas ou de seu rock ‘n’ roll que gosta de definir como “belo e potente”. Acima disso, mesmo que você considere absurdo tudo o que ele diz, Lobão merece respeito.
O ano era 1999, e Lobão vivia o que muitos poderiam considerar o pior momento da sua carreira. De membro fundador da Blitz no início da década de 80 e hitmaker nacional, emplacando “Me Chama”, “Essa Noite, Não” e tantas outras, Lobão vivia uma era de vendas minguando e poucos sucessos. Depois de sair da RCA Victor, gravadora em que lançou seus CDs mais populares, ele se aventurou na Virgin e na Universal para soltar, respectivamente, os discos Nostalgia da Modernidade (1995) e Noite (1998), ambos que, apesar da recepção positiva da crítica, passaram longe de ter boas vendas. No fim das contas, o músico se viu sem qualquer apoio das grandes gravadoras e partiu para o registro de seu 9º disco solo de estúdio, agora totalmente independente – no seu próprio selo, o Universo Paralelo – e de uma forma que, mesmo não sendo completamente inédita, era bastante inovadora para um artista como ele. Em setembro daquele ano, Lobão lançava o A Vida é Doce nas bancas, acompanhado de uma revista relacionada ao álbum e com uma sonoridade moderna e surpreendente, misturando o trip hop com sons acústicos e o estilo clássico do cantor. A ~mídia especializada~, encabeçada pela revista Bizz, acompanhou todo o processo do álbum e não dispensou elogios depois do lançamento. Algum tempo depois, estimou-se que as vendas da revista/CD tenham chegado a 100 mil cópias, número inimaginável para a música independente nacional de então (e de hoje). E Lobão aproveitou a boa recepção e a divulgação intensa na mídia (mesmo que as músicas não tenham chegado com força às rádios) para se posicionar a favor da arte independente e tentar mostrar uma outra realidade possível, em um momento que marcou a música brasileira. Alguns anos depois, Lobão ainda apresentaria a revista OutraCoisa, com formato semelhante, em que foram lançados discos como Enxugando Gelo, de Bnegão & Os Seletores de Frequência, e Nadadenovo, do Mombojó.
Mesmo que haja quem questione a “qualidade artística” da produção do músico e duvide de sua relevância para a formação dos cânones da cultura musical brasileira, é inegável a importância de Lobão no mínimo como um dos grandes agitadores do que veio a ser o rock independente nacional do século XXI. E isso é maior do que o fato de que, nos 17 anos seguintes ao lançamento de A Vida é Doce, Lobão muito mais falou que compôs. Falou de música, de economia criativa, de si mesmo, de todas as coisas que você pode imaginar. E, claro, falou e segue falando muito sobre política e sobre o espírito do tempo brasileiro, se declarando abertamente de direita desde meados de 2010 e militando com força na linha liberal. Desde 1999, foram só dois discos de inéditas, Canções dentro da noite escura (2005) e o recém-lançado O Rigor e a Misericórdia (2016), tema da conversa que tivemos com o cantor por e-mail. E Lobão não mede palavras para falar sobre o novo álbum: “Há uma linguagem nova, fresca e desafiadora em O Rigor e a Misericórdia que, mesmo se eu juntasse todos os meus trabalhos juntos, não atingiriam nem um décimo de sua potência.”, comenta, ao evocarmos o teor revolucionário da sonoridade de A Vida é Doce em comparação com O Rigor, um trabalho que dialoga com o rock setentista seja nos seus timbres, na conversa com o folk, o progressivo e a música acústica ou na sua mixagem cristalina. Junto com o disco, o artista segue a tradição de falar bastante com Em Busca do Rigor e da Misericórdia – Reflexões De Um Ermitão Urbano, livro em que documenta a composição e as primeiras gravações de O Rigor, expressa seus pensamentos sobre episódios recentes da mídia, arte e política e conta fatos da sua vida que ocorreram nos últimos seis anos, em algo como uma pequena continuação de sua biografia, 50 Anos a Mil.
Aliás, foi exatamente com seu primeiro livro em mente que Lobão começou a escrever o Em Busca, no meio das gravações do disco. “Era para ser um apêndice da futura edição do 50 Anos a Mil. Só percebi que se tratava de um evento com natureza própria quando já estava em seu final“, conta, comentando ter escrito tudo em três semanas, com muita pressa, pois o que queria mesmo era música: “eu escrevia um parágrafo, parava e suspirava com meus olhos compridos de melancolia a observar meus instrumentos abandonados ao meu lado”. O livro conta praticamente tudo que envolveu a composição das faixas, sempre com uma visão pessoal de Lobão. O texto é emocionado e carregado com detalhes do processo, às vezes focando nas letras, às vezes no registro dos sons e escolha de instrumentos, às vezes nos acordes e nas harmonias escolhidas e escritas. Claro, Lobão também fala de política, mesclando discursos mais abrangentes, de fácil entendimento para qualquer leitor, e alguma partes visivelmente feitas para “iniciados”, com várias referências aos seus dois best-sellers, 50 Anos a Mil e Manifesto do Nada na Terra do Nunca. Lobão também faz uma mini biografia dos seus últimos seis anos, destacando e comentando o episódio do lançamento d’O Manifesto, sua ida a Brasília em dezembro de 2014, logo depois das votações da Lei de Diretrizes Orçamentárias e também algumas de suas rusgas públicas, como a com o jornalista gaúcho Juremir Machado da Silva.
Em Busca se divide entre biografia, manifesto e livro de acompanhamento para o novo disco, e as histórias de muitas faixas surpreendem. “Ação Fantasmagórica à Distância”, por exemplo, foi a primeira a ser registrada e nasceu num momento mágico para o músico, em que ele sentiu uma conexão emocional extrema com as memórias de seu pai, como conta no livro: “Estava possuído de um desejo intenso de abraçar meu pai e de uma tremenda vontade de cantar a música inteira sem fraquejar. Após dezenas de tentativas, trêmulo de exaustão, respirei fundo e finalmente consegui. Uma alegria descomunal tomou conta de mim. Eu beijava a viola caipira, beijava o teclado, beijava meus braços, minhas mãos, meus cotovelos”. Outro destaque é “Alguma Coisa Qualquer”, composta originalmente na década de 90 para a interpretação de Cássia Eller e que tem uma história emocionante contada pelo músico.
Se o coração de O Rigor e a Misericórdia está exposto no livro, Lobão nos revelou por e-mail vários detalhes do disco que aconteceram posteriormente ao fim de Em Busca e algumas de suas opiniões mais fortes sobre o próprio trabalho. Apesar de já produzir o que veio a ser o novo álbum desde 2013, e de ter feito tudo sozinho e em casa, desde as letras até as composições, os instrumentais e as gravações, o artista lançou um crowdfunding no site Kickante em maio de 2015 para finalizar de vez o disco. Foi com essa ajuda que o músico conseguiu um equipamento de qualidade para regravar o álbum praticamente por inteiro. “99% do álbum foi todo refeito depois do livro ser escrito. Desde que chegou a placa de áudio nova que comprei com a ajuda dos apoiadores do crowdfunding, a diferença de som foi brutal. Tive que respirar fundo e refazer tudo e isso me custou mais um mês e meio pra regravar o que realmente precisava: guitarras, baixo, baterias, teclados e todas as vozes.” Sobre a mixagem e masterização do álbum, Lobão revela que também foram feitas na sua casa, mas com a ajuda de Diovainne Moreira, responsável por instalar a placa de som e, desde então, amigo do músico. “Aprendi muito com ele nesse processo e continuo aprendendo. Uma figura rara e providencial.”
Nesse mergulho solitário dentro do seu próprio mundo sonoro, Lobão traz em O Rigor e a Misericórdia um disco diverso e com ideias surpreendentes até para quem é fã antigo do cantor. O Rigor é um trabalho de rock, com uma queda para os anos 70, mas que o próprio artista classifica como tendo um “timbre absolutamente próprio”. Além da bateria e guitarra, instrumentos que fizeram parte da formação de Lobão, o cantor se aventurou no baixo, na viola caipira e nos teclados, esses últimos com presença marcante através de diversos timbres. Não é por acaso que, muitas vezes, há a impressão de estarmos ouvindo um arranjo de cordas, num clima semelhante ao rock progressivo. Quando comentamos sobre isso, Lobão confirma: “O fato do disco novo soar virtuoso é porque você ouve realmente os instrumentos que, desta feita, executam com perfeição as minhas intenções de autor”. É nesse ponto que evocamos a comparação com A Vida é Doce, o histórico álbum que é descrito no início do texto. Lobão diz ter um profundo amor pelo repertório do disco de 1999, mas que o resultado que saiu em CD não o agrada por suas mixagem e masterização “péssimas”, detalhes que pode corrigir com o tempo, nas apresentações ao vivo; e também comenta não ter orgulho da tentativa de soar moderno na sonoridade, “pois ela é postiça, afetada”. “Creio que o conceito de misturar violas caipiras, violões seresta, com baterias, teclados e guitarras uma fusão muito mais criativa e possante do que as tentativas kitsch da sonoridade trip-hop de A Vida É Doce”, completa.
Ainda falando sobre A Vida é Doce, Lobão revela que ter discutido muito com o produtor do disco e que, “como sempre, me frustrei muito ao ouvir o resultado final”. O músico revela que a frustração com o próprio trabalho foi uma constante em sua carreira, e que O Rigor e a Misericórdia também foi diferente nesse ponto. “O Rigor e a Misericórdia é o primeiro trabalho que realizo e não sofro de ressaca moral ao ouvi-lo completo. É uma sensação maravilhosa você se ouvir e finamente exclamar: ‘isso sou eu até o osso, isso é tudo o que queria dizer da forma exata como queria me exprimir’. Por ser isso, algo inédito na minha vida, guardo esse momento como a maior conquista que já empreendi.” Como já deu para perceber, Lobão não mede palavras para expressar seu carinho por O Rigor. Quando perguntado sobre o fator “caótico” das composições, sobre quantas músicas, a partir do livro, parecem ter surgido em momentos de inspiração espontânea, o artista nega esse fator como definidor do que é O Rigor. “O disco foi todo feito com esforço, foco e intenção em concebê-lo. Passei 10 anos me qualificando para compô-lo, gravá-lo, tocá-lo e arranjá-lo. Isso sim foi o que me tomou tempo”, explana, não deixando de falar que, claro, às vezes pequenas inspirações surgem no meio do trabalho duro. Porém, ele define com força: “fiz o disco com o mesmo empenho e disciplina de um aluno que é obrigado a fazer uma redação no colégio: sentar-se diante do papel em branco, violão, guitarra ou viola caipira no colo, ou debruçado no piano a queimar a mufa dia e noite.”
E o resultado de todos esses fatos é um Lobão renovado, um artista que, nas suas próprias palavras, se sente começando de novo. Quando perguntamos se, depois de O Rigor, ele sente vontade de continuar fazendo música, a reposta é positiva e chega até em tom de celebração. “Pela primeira vez em toda a minha carreira eu termino um disco com a sensação de que a brincadeira acabou de começar. Na verdade, na minha cabeça, minha história musical se inicia com esse disco. O resto foi ensaio.” Falando sobre “A Solidão em Sermos Nós”, faixa divulgada como poema em português há algum tempo, mas que ganha versão em espanhol no disco com “O Que Es la Soledad en Sermos Nosotros”, Lobão revela que está planejando um lançamento em vinil duplo com extras para O Rigor, e que a gravação em português para a canção provavelmente estará na edição. Como Lobão transparece em toda a entrevista, as palavras e o tratamento para O Rigor e a Misericórdia são de luxo, de um artista realmente orgulhoso de seu trabalho.
Em certo ponto do livro, Lobão também explica a origem do título O Rigor e a Misericórdia, e ele é um conceito de um dos grandes gurus e amigos de Lobão desde a sua “guinada à direita”: Olavo de Carvalho. Em uma explicação muito simplificada, o “rigor” e a “misericórdia” seriam a relação do homem com o conhecimento e a poesia. O ser humano traria o seu rigor para com o espírito através do estudo e da pesquisa, para se aproximar cada vez mais de uma sabedoria. O espírito, então, devolveria a poesia como misericórdia, em resposta ao rigor. O conceito traz um viés muito forte de um pensamento de plenitude artística, de uma arte ideal. E assim perguntamos para o artista, se ele titulava O Rigor assim por considerá-lo seu melhor trabalho, sua obra-prima. Mas a resposta é negativa. “É mais simples: eu precisava de um título que representasse a forte dualidade que habita seu repertório, como delicadeza/fúria, acústico/elétrico, escuridão/luz, morte/eternidade. Quando descobri o texto do Olavo, achei perfeito o título para um conceito que se desenvolveria com vida própria e identidade própria no universo do disco.” Após isso, Lobão ainda revela: “confesso que senti estar fazendo algo muito especial apenas no final do disco. No início, não tinha a menor noção do que estava fazendo. Mal sabia ligar o Pro Tools. Foi como pegar uma caravela sem manual de instruções e me lançar ao mar desconhecido.”
A partir desse ponto, nossas perguntas rumaram para a política e sua relação com a música, algo inevitável quando se está falando com Lobão. O Rigor traz “A Marcha Dos Infames”, “Os Últimos Farrapos da Liberdade” e “A Posse dos Impostores”, faixas com um forte teor político e até de militância, características que Lobão declara detestar na música como um todo. “Detesto música de protesto. É de uma cafonice aterrorizante. Se fiz, foi por pura necessidade. E por isso a parcimônia em compor esse tipo de canção. Eu faço música para minha felicidade e liberdade interiores. A solidão é minha companheira e minhas expectativas externas são zero”, comenta, antes de conversarmos sobre a caçada “inclemente e contínua” à sua pessoa que Lobão vê na mídia e na sociedade. Perguntamos se ele acha que é mais perseguido hoje do que em outros tempos, e o cantor nega: “não consigo imaginar que em algum momento da minha carreira minha exposição tenha sido mais amena.” Para Lobão, o Brasil não permitiria uma personalidade como ele ter “algum tipo de sossego ou sequer algum respeito”, e sua resposta para os ataques da mídia e da sociedade viria em suas obras, com o novo álbum como exemplo. “O meu objetivo em registrar O Rigor na história foi poder devolver a miséria que nos é imposta por viver num país tão colapsado em sua civilização, com uma produção cultural tão feia e mesquinha, com um disco de uma beleza inexplicável, cruel, quase indecente.” Ainda falando sobre a cena cultural brasileira, comentamos sobre propostas como Transfusão Noise Records, Geração Perdida de Minas Gerais e Quintavant, selos e movimentos que representam certa independência ao mercado e também ao governo, que Lobão tanto abomina. O artista revela não conhecer essas propostas, mas as parabeniza desde já, pois se identifica com suas ideias. “Existo dentro desses mesmos cânones. Não temos mais espaço para pensar em mainstream, gravadoras, rádios, etc”
Assim como no conteúdo de certas músicas, os ataques de Lobão à esquerda no livro são pesados, tentando atingir com força também os artistas e intelectuais que expressam pensamentos ligados ao socialismo. Em Busca não deixa de ser um show de aforismos, alguns que os mais sensíveis podem considerar até ofensivos. “Não é de graça que a atual produção musical do país é a mais inexpressiva e desimportante de toda a história da música popular brasileira”, declara, entre as páginas 121 e 122. E quase todo comentário político é acompanhado de comparações e sacadinhas com estereótipos da esquerda atual, principalmente a universitária. E, nas perguntas relacionadas a política, Lobão não foge muito desse viés apocalíptico. “Estamos vivendo o apogeu de um perverso totalitarismo cultural. Tenho a sensação que nunca produzimos tanta porcaria. Minha sensação é de que estamos em pleno colapso civilizacional. Minha sensação é que tudo me indica um Brasil podendo se evaporar do mapa, se estilhaçar por inteiro a qualquer instante. Sem exageros, pode crer”, comenta sobre a mesma frase citada acima. Lobão amplia a explicação sobre esse “totalitarismo cultural” comentando que vivemos “numa civilização patrimonialista, em um coronelato que se estende a toda produção intelectual e que sempre teve uma presença dominante do pensamento esteticista inclinado à esquerda.” E o argumento do músico é de que isso simplesmente não faz bem ao país, pois o coronelato de “sábios”, intelectuais, formaria uma rede de cooptação ideológica sedimentada com o modernismo e que controla o pensamento nacional (de forma totalitária) desde o Estado Novo. “Em outras palavras: foi o momento em que a classe artística e os intelectuais começaram a mamar grana do poder e ditar normas de comportamento”, comenta. Apesar de contar no livro que sua aproximação aos pensamentos de direita veio, em parte, da reação negativa que os militantes de esquerda tiveram com um discurso em que criticara a Comissão da Verdade e defendera anistia para todos os envolvidos em crimes durante a ditadura, até mesmo torturadores e demais integrantes do regime, Lobão chama a expressão “guinada à direita” de “souvenir e brinde desse totalitarismo cultural de que estou falando. Quem não se alinha aos sábios e coronéis é reacionário, direitista e a favor da ditadura militar”. Nesse ponto, é bom lembrar que o artista jamais se disse a favor da ditadura, mas sim como liberal e defensor do Estado mínimo.
Lobão também comenta isso durante a entrevista, expressando algo como uma fórmula de Estado mínimo que consideraria próxima ao seu ideal de formato político. “Privatização inclemente, livre iniciativa, redução dramática de impostos, fim do assistencialismo, incremento do empreendedorismo, produção de riqueza ao invés de distribuição de riqueza. Liberdade de expressão, de opinião, fim da doutrinação nas escolas.” Seguindo a conversa sobre política, Lobão demonstra cada vez mais demarcadamente seu desprezo à esquerda. Perguntado sobre os partidos menores com ligação às ideias socialistas, mas que não são ligados ao governo, o cantor ironiza: “são ainda piores! A esquerda é o corrimão do ressentido.” Perguntado sobre os países nórdicos, usados por muitos como exemplos do sucesso da social-democracia, o artista afirma: “estão todos empobrecidos, sendo obrigados a se recapitalizar. Sem contar com a plêiade de vagabundos, encostados e indolentes auto vitimizados gerados em seu seio”. E essa negação extrema de qualquer ideia próxima à esquerda acontece em praticamente todo o Em Busca. Na página 42, escreve: “não há na história da humanidade um só caso de que possamos nos jactar, de alguma pálida forma que seja, da esquerda tendo um papel bem-sucedido como modelo político”. O artista se expressa como se as ideias de esquerda fossem falidas já em sua base, quando a ideologia ainda carrega muitos seguidores no mundo inteiro. Parte de uma negação de qualquer forma de diálogo com ideias políticas socialistas, de um total desprezo a tudo que tende a direções contrárias ao seu pensamento. Lobão responde bem às nossas perguntas mais complexas, mas ainda se entrega a um teor conspiratório e que parece não ter força de diálogo com parcelas mais de centro da sociedade quando tenta se aprofundar na negação do socialismo. É uma visão bastante fechada, quase inversa a um pluralismo de ideias que seria natural a qualquer democracia. Ao contrário das próprias noções de “rigor” e “misericórdia”, suas expressões se aproximam muito mais ao marketing do que às trocas de conhecimento, principalmente quando às expressa em público. E esse é um sintoma perceptível não só na direita. A esquerda extrema tende a ver todos os males na parte liberal do mundo, enquanto a direita extrema considera tudo um capitalismo de Estado e diz que não há um liberalismo real – visões hipócritas, já que a esquerda passa a negar uma de suas bases teóricas, a dialética; e a direita se aproxima de uma caça às bruxas digna de Estados autoritários. E o mais interessante é que essas expressões de Lobão podem ser vistas, também, como o transparecimento de uma cultura muito atual, em que toda a comunicação, mesmo a pessoal, se torna marketing – e isso se expressa com força nas redes sociais, em que o simples diálogo é quantificado e qualificado constantemente. Mas vale salientar que essa é uma impressão causada pelo livro, o disco e a entrevista, já que Lobão vem tentando nas últimas semanas abrir um diálogo com Chico Buarque, Gilberto Gil e Caetano Veloso, por exemplo.
Para além desse tour de force de pensamentos sobre Lobão expressos no último parágrafo, que pedimos para que os mais apaixonados por ideais políticos ignorem, é inevitável afirmar que O Rigor e a Misericórdia e o livro que o acompanha mantém o artista com uma relevância impressionante. Seja através de suas ideias políticas ou de seu rock ‘n’ roll que gosta de definir como “belo e potente”. Acima disso, mesmo que você considere absurdo tudo o que ele diz, Lobão merece respeito.
Nenhum comentário:
Postar um comentário